

Exposição individual "1 metro de cabelo", de Adriano Costa
Exposição
- Nome: Exposição individual "1 metro de cabelo", de Adriano Costa
- Abertura: 01 de abril 2025
- Visitação: até 24 de maio 2025
Local
- Local: Mendes Wood DM
- Evento Online: Não
- Endereço: Rua Barra Funda, 216
Adriano Costa
1 metro de cabelo
1 de abril – 24 de Maio, 2025
A propósito de 1 metro de cabelo
Ele me deu um beijo na boca e me disse
A vida é oca como a touca de um bebê sem cabeça
E eu ri à beça
E ele, como uma toca de raposa bêbada
E eu disse, chega da sua conversa
De poça sem fundo
Eu sei que o mundo
É um fluxo sem leito e é só no oco do seu peito
Que corre um rio
Caetano Veloso, 1982
Em tempos de tanta repetição, reprodutibilidade e descartabilidade, são poucos os artistas brasileiros que conseguem construir uma trajetória na contramão de um desejo imediato de mercado ou de temas sociais mais em voga. Adriano Costa (São Paulo, 1975) é um deles, justamente pelo raro apreço em não particularizar o debate da arte em torno do imediatismo de certos temas e histórias. Sua politização (que é de ordem estética, diga-se) é mais sutil e se deflagra quando das obras em conjunto no espaço expositivo, na sugestão de seus títulos e nas imagens que se formam a partir de cada exposição.
De um lado, é possível ancorar a produção dele a partir da verve experimental e ambiental de Hélio Oiticica e da ironia e da radicalidade nos usos dos materiais pela Geração 80, de Paulo Monteiro a Leda Catunda. Podemos dizer que é nessa tradição que está enraizada a sua produção. Já do outro, há uma boa condição dialógica com produções internacionais em voga, a exemplo de parte das práticas da alemã Isa Genzken, do norte-americano Paul Thek, entre outros. Podemos afirmar que tais conexões indiretas advém de seu contato permanente com a produção atual, uma espécie de perspectiva de presença diante do que se tem concebido no universo criativo da arte contemporânea.
Como é sabido, Adriano vem paulatinamente afirmando sua produção em contexto internacional: ele acompanha um circuito institucional, muitas vezes em programas de residência ou em exposições coletivas que abordam temas e processos históricos, como também participa do circuito privado de galerias e de espaços independentes. Apesar de normalmente organizar a exposição com trabalhos distintos e independentes, a intercomunicação que é estabelecida em loco entre as obras e o espaço dão sentido amplificado à sua produção. É algo que ele nunca perde de vista. De certa maneira, pode ser redutor pensar os seus trabalhos apenas como dispositivos autônomos, dissociados de um contexto expositivo. Entretanto, colocando em perspectiva, faz parte de sua atuação entender como cada um dos elementos que se distribuem em certo espaço arquitetônico podem engendrar uma melhor relação dialógica com o público.
De uma formação em faculdade pública, na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, à atuação em um contexto global mais amplo, sem necessariamente representar o rótulo de artista brasileiro ou latino-americano, ele segue firme em seu propósito intuitivo de trazer o mundo exterior para o universo interior de sua arte. Nesse propósito podemos também incluir um olhar sobre as reverberações de quem viveu a vida cultural noturna de São Paulo. E essa é uma das tônicas possíveis de 1 metro de cabelo.
Sobre uma coesão poética
De forma amplificada, sua prática artística refuta a construção de certos padrões ou linhas de coerência formal. Ao contrário, em seus exercícios diários de composição há uma vontade em construir algo que ressoa em seu presente, mesmo que o estopim da obra esteja na memória de alguma referência de sua vida íntima ou urbana: seja numa alusão às questões de uma cultural comportamental, seja de uma cultura musical, cinematográfica ou televisiva. Difícil também é associá-lo à uma linguagem ou suporte específico. Há uma transitoriedade técnica que radicaliza o seu método de trabalho, desobedecendo padrões na forma de realizar seus objetos, assemblages, readymades, esculturas e instalações. É o bronze que não recebe a tradicional patina, é a escultura em mental que não possui tratamento uniforme, é a escolha de moldura e sua quebra de padrão, entre tantas outras quebras de padrão.
Para ele, a simbiótica relação entre sua arte e sua vida cotidiana é inalienável. Não há como supor uma percepção de sua produção artística dissociada dos seus desejos, de suas reflexões formais e comportamentais e de seu mar de referências pessoais. Em nossa percepção, tudo começa com a conquista de um objeto, um retalho, uma forma. Estes elementos são disparadores de uma oportunidade plástica. É ela que irá guiar a transmutação em obra de arte. Não há medo do risco em fazer uso de novos materiais, experimentar aproximações entre eles, fundi-los ou contrastá-los com objetos do cotidiano, selecionados previamente pelo artista. Tudo figura e protagoniza na confusão propositada de matérias e objetos. Ele é promotor de um encontro destemido entre coisas díspares, o que representa uma ação tributária ao gesto seminal de Rauschenberg, uma referência histórica na combinação de coisas e de seus respectivos materiais.
Importante dizer que não se trata de mera repetição de procedimentos da assemblage ou do combine. O que ele faz é algo que pode ir além, sem critério prévio. É a ativação de certos signos que aparentemente não parecem conter aproximação. Só que, quando extraídos do cotidiano e arranjados em novas formas objetais e pictóricas, passam a ganhar outra existência, perdendo a exigência da veracidade utilitária do objeto original ou do próprio objeto que ele quer referenciar. Como exemplo imediato, podemos lembrar dos objetos domésticos que aparecem na exposição.
No universo destes novos trabalhos, destaco os elementos que aparentemente são tão díspares, mas que ganham sentido em conjunto: pinturas feitas com retalhos de tela ou papel que configuram situações corporais, no meio do caminho entre uma tela pictórica e uma colagem; um sapato, provavelmente achado, depois pintado (o que parece ser uma paisagem ou não) e identificado como Só entende quem; os maiôs em uma arara, quase como um desfile de corpos ou mesmo a sugestão de uma loja. Todos estes dispositivos oferecem uma dança de sentidos que cabe a você estabelecer.
De uma forma ou de outra, numa reunião de suas obras, todas as coisas que vemos e eventualmente queremos tatear podem nos causar vontade de aproximação ou repulsa, um movimento dicotômico em que, em última instância, parece estar contida e camuflada a ideia de vazio – um vazio existencial, um vazio material –, mesmo com aquele cabedal de referências que podemos reconhecer. É quase como uma metáfora do nosso cotidiano, vivência que precisa constantemente ser preenchida de sentido. Muito do que nos sinaliza, por vezes ironicamente, são charadas visuais que devaneiam, a partir dos objetos mais banais, sobre questões que são de ordem existencial. Abre-se, desse modo, uma possibilidade de diálogo entre cada um de nós e o artista.
Comparo esse gesto de aproximação e diálogo com uma canção de Caetano Veloso, lançada em 1982, e que não passou ilesa à censura moral do aparato da ditadura civil-militar brasileira: Ele me deu um beijo na boca . Nessa canção, na qual a letra nos parece o relato poético de uma conversa, Caetano entoa em seu segundo verso, a seguinte observação: “a vida é oca como a touca de um bebê sem cabeça”. É o início de um papo filosofal e existencialista com forte senso de humor, por meio do qual temos essa imagem poderosa descrita, uma forma de analogia, em que se coloca, com o mesmo peso e sentido, o vazio existencial e material da vida com a condição da “touca vazia de um bebê sem cabeça”. A meu ver, é nessa sinuca de bico, uma espécie de charada poética, que Adriano nos chama também para uma conversa, quando da aproximação para com os seus trabalhos.
Sugiro, neste caso, que observemos suas peças em bronze, moldadas com o dedo, em que a presença da cor mascara o peso e a nobreza do próprio material, nos apresentando literalmente alguns vazios de entendimento que moram entre o título da peça e sua materialidade. Desdobrar sentidos a partir deste contato com a obra me parece ser uma intenção muito próxima daquela que Caetano nos incentiva com sua canção.
Aliás, em um desses trabalhos de bronze de maior porte, chamado de Exato contínuo (2025), o artista traz como inspiração direta o painel-cenário do artista e cenógrafo Hélio Eichbauer (1941-2018) criado para a peça o Rei da Vela; concebida por Oswald de Andrade (1890-1954), em 1933, e encenada pelo Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa (1937-2023), em 1967. Há uma clara intenção do Adriano de trazer para o presente uma leitura tributária dessa ideia de Brasil como um projeto de modernidade inacabado, um fluxo contínuo que tende sempre há um recomeço e permanece inconcluso. E esse foi, em certa medida, um dos motivos que fez Veloso trazer tal cenário para a capa do seu disco “Estrangeiro” (1989), o que encerrava sua jornada poética nos anos 1980 e comentava, ainda na primeira canção do álbum, esse movimento cíclico e contínuo que nos representa culturalmente. Inclusive, talvez seja isso que o artista nos queira contar. Sendo assim, da mesma forma como os militares ficaram de olho na literalidade moralista de um beijo entre dois homens, nós não devemos nos prender na condição literal e visual da obra em si.
Muito além de 1 metro de cabelo
A propósito de 1 metro de cabelo, sua exposição de obras inéditas na galeria, ele sublinha mais uma vez seu desejo de colocar cada trabalho em relação, criando uma estrutura espaço-temporal que só é possível de ser presenciada no contexto criado dentro do ambiente da mostra. Acresce-se a isso uma referência direta à expressão “bater cabelo”, presente na cultura LGBTQIA+. Em ambientes de convívio social de pessoas que ainda são marginalizadas, há de fato um gesto corporal, que em muitos casos pode ser uma disputa de cabelo entre personagens deste mesmo círculo social, ao demonstrar empoderamento e presença. De certo, trata-se de um índice da linguagem corporal, fazendo jus à própria expressão mencionada.
É possível, inclusive, tratar estes gestos como uma dança de embate, quase como uma luta simbólica, envolvendo movimentos e atritos do corpo com o espaço em volta. De forma mais ampla, é também uma prática que une uma comunidade, socialmente excluída, em que seus personagens buscam acolhimento em um contexto de afinidade comportamental e de linguagem. Por meio dessa e de outras práticas, explicita-se um jogo sensorial e expressivo de quem se impõe por meio de uma construção de visibilidade.
Ainda também como índice de referência, o artista traz as manifestações e batalhas de dança dos anos 1970 e 1980, conhecidas como whacking e voguing. Práticas nascidas nos grandes centros urbanos norte-americanos, muitas vezes como formas de resistência e luta das suas respectivas comunidades LGBTQIA+. Hoje em dia, são atividades reconhecidas pelo mundo, uma cultura que se encontra no agora das ruas e dos streamings, representadas em reality shows e nas muitas baladas de uma cidade como São Paulo. De fato, o conflito entre dois corpos em uma quase luta pode engendrar algum grau de violência, o que está também em outras práticas de dança e/ou esporte, como a capoeira.
Pode-se dizer que houve, portanto, com o passar do tempo, um processo que engendrou uma suavização da dança, até mesmo uma representação tragicômica para um público mais amplo, o que acaba por se entender essas performances como puro entretenimento, descondicionado de sua expressão artística que também é política. Sabendo disso, como alguém que viveu e participou da noite paulistana, especialmente nos anos 2000, Adriano Costa retoma em suas estratégias artísticas algumas referências da cultura noturna daqueles anos. E realiza, por meio de sua produção plástica, uma citação indireta aos movimentos que vieram dessas práticas descritas. Não sei se podemos falar em homenagem, mas, a meu ver, há uma certa deferência à luta sociocultural de quem viveu a noite, transformando festa em vida política.
Não se trata de construir uma representação pueril de movimentos sociais e artísticos tão complexos como os mencionados, mas trazer para a sua arte estruturas visuais e compositivas que partem de um olhar sensível dele para com essas práticas. Ao avançar nesse seu interesse, ele propõe uma série de esculturas metálicas que são construídas a partir das medidas ergonômicas de seu próprio corpo. Todas elas estão estruturadas em sedutores movimentos de dança, postura e possível relação com o outro. Talvez um dado inédito em sua nova produção é a vontade de explicitar e tornar protagonista sua própria condição corporal e humana.
Apesar deste caminho poético que enfatiza o encontro com o outro, há também em seus trabalhos novos algumas referências à domesticidade, aos objetos mais ordinários do dia a dia. Percebe-se um par de sapatos, caixas de som, um objeto que lembra micro-ondas/forno. Aliás, as peças em bronze nos colocam uma charada visual, algo semelhante ao que Claes Oldenburg nos entregou com sua arte. Em função de suas formas moldadas pelos seus próprios dedos, que formam sulcos na matéria, e pela presença da cor (impregnação feita com tinta acrílica), elas sugerem uma maleabilidade e uma leveza nas peças que na realidade elas não possuem. Muitas delas, inclusive, são dispostas em parede, gerando um lugar de dúvida. A aparente delicadeza se desfaz na aproximação e, eventualmente, no próprio tato.
Acredita-se que o caminho escultórico proposto é fruto de todas estas referências postas mais ou menos em destaque. Elas em conjunto formam um pano de fundo para toda a sua produção atual, partindo do que é do universo particular do indivíduo ao que é do convívio em público. De forma geral, é importante repetir: reparem que a grande maioria dos objetos feitos em bronze foram moldados no uso da força expressiva dos dedos que ganha protagonismo. Essas novas abordagens e desdobramentos plásticos não passam ilesos ao fino trato do humor que ele traz, contrapondo-se aos gestos mais idealistas que vemos na arte hoje. Como diria Caetano, o universo poético de Adriano Costa é como “um fluxo sem leito e é só no oco do seu peito que corre um rio”.
– Diego Matos, entre fevereiro e março de 2025.
Serviço
Adriano Costa
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